Conheci uma fada na minha infância. Aparentemente
diferente daquelas que eu via nos desenhos animados e nas ilustrações dos
livros infantis. Ela não usava aquele modelo básico do vestuário das fadas nem
tinha varinha de condão. Vestia-se de gente. Mas, como aquelas das histórias,
aparecia, como que por mágica, nos momentos mais estranhos para me lembrar que
eu era criança. Enchia meus dias com surpresas. Adivinhava sonhos. Investia em
cada possibilidade de um sorriso meu, como se fosse dela também. E, de alguma
forma, realmente era.
Fazia surgir diante de mim filmes sobre fuscas que
falavam. Piscinas. Parques de diversões. Batatas fritas e sundaes. Bonecas e
palhaços. Os primeiros livros. Os presentes mais caros que pedia a Papai Noel e
encontrava, feliz, nas manhãs de Natal. Ainda lembro do filé de peixe com purê
de batatas que comi, desajeitada, na Colombo, na primeira vez em que almocei
num restaurante. O centro da cidade, com suas avenidas largas e seus prédios
gigantescos, parecia aos meus olhos infantis infinitamente maior do que é e
também menos assustador.
Passaram-se muitos anos. Não consigo lembrar com
clareza dos detalhes do seu rosto. O que vejo nas lembranças que me chegam são
traços confusos. Imagens embaçadas. Sem contornos. Sem certezas. Não sei dizer
com exatidão qual era a tonalidade da sua pele. Como era o seu andar. Como era
o movimento que fazia nascer o seu sorriso. Com nitidez, recordo apenas do que
nunca teve forma nem descrição precisa, pois embora eu não lembre do tom da cor
dos seus olhos, posso sentir, ainda hoje, a ternura e o lume com que me
olhavam. Naquele tempo eu não sabia, como algumas vezes ainda não sei, o que
fazer com tanta claridade.
Percebia que era muito especial para ela, mas não
tentava entender o porquê. Quando somos crianças não procuramos essa
compreensão, que, no fundo, ainda não sei pra quê exatamente nos serve. Apenas
intuímos. Apenas sentimos. Sem o costume tão comum nos adultos de querer
explicar todas as coisas. De insistir que tudo precisa ter nome. Que tudo
precisa ter lógica. Quando me apresentava às pessoas parecia exibir um prêmio.
Um bem muito valioso. E eu me encabulava com aquela demonstração de um
sentimento que, agora, acostumada a dar nome a tudo, chamo de amor.
Eu tinha treze anos quando foi baleada num assalto.
Não sobreviveu. Morreu aos trinta e dois e eu não entendia naquela época o
quanto realmente era nova. Quando vi seu corpo, morto, e me dei conta de que
não sorriria mais para mim com aquele clarão no olhar, eu chorei como talvez
nunca houvesse chorado. Foi a primeira vez que senti, consciente, uma dor que
não morava no corpo. Que gritava em outro lugar.
Muitas vezes lamentei por não poder chamá-la para
ir ao cinema comigo. Para tomar outro sundae. Para almoçar outro filé de peixe
com purê de batatas. Por não poder sentar ao seu lado para conversar sobre a
vida. Sobre as coisas que aprendi e aquelas que resisto em aprender. Lamentei,
principalmente, por em momento algum ter lhe dito que a amava, embora acredite
que, de alguma forma, ela tenha ouvido. Foi a partir dessa circunstância que
comecei a querer expressar o meu afeto pelas pessoas enquanto estão aqui,
próximas de mim, e eu posso pôr em prática o amor que sinto por elas, porque
aprendi que a qualquer instante elas podem não estar mais.
Como nunca vi uma fada morrer nas histórias que li,
acredito que ela deve estar por aí, em algum lugar bonito, fazendo outras mágicas.
E, onde quer que esteja, deve continuar a não se vestir como a maioria das
fadas dos desenhos animados e dos livros infantis. Sem essa roupa de gente que
a terra nos empresta, ela agora deve ser somente luz. Aquela que eu via no seu
olhar de amor.
Se ainda estivesse nessas bandas terrenas, Tia
Vanda, ontem, teria completado 61 anos. Seria minha madrinha de crisma, mas
trocou de frasco antes que isso oficialmente pudesse acontecer. No coração,
aconteceu. Foi minha madrinha, como tanto queria. Foi minha amiga, o tempo
todo.
Quando eu era menina, ela se entusiasmava com o meu
gosto pela escrita e acreditava que isso se tornaria algo cada vez mais valioso
para mim. A publicação desse texto, faz muitos anos que escrevi, é uma forma
carinhosa de dizer que ela estava certa. Uma homenagem a alguém, cuja vida está
sempre sendo atualizada, afetivamente, pela minha memória. Uma maneira, tanto
tempo depois, de dizer "eu te amo também".
2 comentários:
Ana Jácomo, seus textos são maravilhosos, você espalha amor,
como se fosse muito grata à sua fada madrinha, obrigada!
Que seja sempre abençoada!
Obrigada, Maria José!
Suas escolhas são sempre especiais e nos enchem de esperança.
Tenha uma excelente semana, abraços carinhosos
Maria Teresa
Representativo de um afeto verdadeiro do coração de uma menina em toda sua plenitude..assim será por toda vida...a melhor declaração de que o sentimento de amizade é eterno e manterá a fada madrinha viva em sua história.
Um abraço.
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