Páginas

sábado, 17 de outubro de 2015

FADA MADRINHA


Conheci uma fada na minha infância. Aparentemente diferente daquelas que eu via nos desenhos animados e nas ilustrações dos livros infantis. Ela não usava aquele modelo básico do vestuário das fadas nem tinha varinha de condão. Vestia-se de gente. Mas, como aquelas das histórias, aparecia, como que por mágica, nos momentos mais estranhos para me lembrar que eu era criança. Enchia meus dias com surpresas. Adivinhava sonhos. Investia em cada possibilidade de um sorriso meu, como se fosse dela também. E, de alguma forma, realmente era.
Fazia surgir diante de mim filmes sobre fuscas que falavam. Piscinas. Parques de diversões. Batatas fritas e sundaes. Bonecas e palhaços. Os primeiros livros. Os presentes mais caros que pedia a Papai Noel e encontrava, feliz, nas manhãs de Natal. Ainda lembro do filé de peixe com purê de batatas que comi, desajeitada, na Colombo, na primeira vez em que almocei num restaurante. O centro da cidade, com suas avenidas largas e seus prédios gigantescos, parecia aos meus olhos infantis infinitamente maior do que é e também menos assustador.
Passaram-se muitos anos. Não consigo lembrar com clareza dos detalhes do seu rosto. O que vejo nas lembranças que me chegam são traços confusos. Imagens embaçadas. Sem contornos. Sem certezas. Não sei dizer com exatidão qual era a tonalidade da sua pele. Como era o seu andar. Como era o movimento que fazia nascer o seu sorriso. Com nitidez, recordo apenas do que nunca teve forma nem descrição precisa, pois embora eu não lembre do tom da cor dos seus olhos, posso sentir, ainda hoje, a ternura e o lume com que me olhavam. Naquele tempo eu não sabia, como algumas vezes ainda não sei, o que fazer com tanta claridade.
Percebia que era muito especial para ela, mas não tentava entender o porquê. Quando somos crianças não procuramos essa compreensão, que, no fundo, ainda não sei pra quê exatamente nos serve. Apenas intuímos. Apenas sentimos. Sem o costume tão comum nos adultos de querer explicar todas as coisas. De insistir que tudo precisa ter nome. Que tudo precisa ter lógica. Quando me apresentava às pessoas parecia exibir um prêmio. Um bem muito valioso. E eu me encabulava com aquela demonstração de um sentimento que, agora, acostumada a dar nome a tudo, chamo de amor.
Eu tinha treze anos quando foi baleada num assalto. Não sobreviveu. Morreu aos trinta e dois e eu não entendia naquela época o quanto realmente era nova. Quando vi seu corpo, morto, e me dei conta de que não sorriria mais para mim com aquele clarão no olhar, eu chorei como talvez nunca houvesse chorado. Foi a primeira vez que senti, consciente, uma dor que não morava no corpo. Que gritava em outro lugar.
Muitas vezes lamentei por não poder chamá-la para ir ao cinema comigo. Para tomar outro sundae. Para almoçar outro filé de peixe com purê de batatas. Por não poder sentar ao seu lado para conversar sobre a vida. Sobre as coisas que aprendi e aquelas que resisto em aprender. Lamentei, principalmente, por em momento algum ter lhe dito que a amava, embora acredite que, de alguma forma, ela tenha ouvido. Foi a partir dessa circunstância que comecei a querer expressar o meu afeto pelas pessoas enquanto estão aqui, próximas de mim, e eu posso pôr em prática o amor que sinto por elas, porque aprendi que a qualquer instante elas podem não estar mais.
Como nunca vi uma fada morrer nas histórias que li, acredito que ela deve estar por aí, em algum lugar bonito, fazendo outras mágicas. E, onde quer que esteja, deve continuar a não se vestir como a maioria das fadas dos desenhos animados e dos livros infantis. Sem essa roupa de gente que a terra nos empresta, ela agora deve ser somente luz. Aquela que eu via no seu olhar de amor.
Se ainda estivesse nessas bandas terrenas, Tia Vanda, ontem, teria completado 61 anos. Seria minha madrinha de crisma, mas trocou de frasco antes que isso oficialmente pudesse acontecer. No coração, aconteceu. Foi minha madrinha, como tanto queria. Foi minha amiga, o tempo todo.
Quando eu era menina, ela se entusiasmava com o meu gosto pela escrita e acreditava que isso se tornaria algo cada vez mais valioso para mim. A publicação desse texto, faz muitos anos que escrevi, é uma forma carinhosa de dizer que ela estava certa. Uma homenagem a alguém, cuja vida está sempre sendo atualizada, afetivamente, pela minha memória. Uma maneira, tanto tempo depois, de dizer "eu te amo também".

2 comentários:

Maria Teresa Valente disse...

Ana Jácomo, seus textos são maravilhosos, você espalha amor,
como se fosse muito grata à sua fada madrinha, obrigada!
Que seja sempre abençoada!
Obrigada, Maria José!
Suas escolhas são sempre especiais e nos enchem de esperança.
Tenha uma excelente semana, abraços carinhosos
Maria Teresa

Guaraciaba Perides disse...

Representativo de um afeto verdadeiro do coração de uma menina em toda sua plenitude..assim será por toda vida...a melhor declaração de que o sentimento de amizade é eterno e manterá a fada madrinha viva em sua história.
Um abraço.