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domingo, 31 de março de 2013

ALMAS GÊMEAS



Almas gêmeas não são duas metades iguais, mas duas metades diferentes que se completam.
Existe muita gente sozinha no mundo, justamente porque essas pessoas procuram a outra metade igual a elas, ou seja, o reflexo de si. Ora, pra achar a outra metade de si mesmo é suficiente se olhar no espelho.
Diz-se de modo carinhoso que o outro é a metade da sua maçã. E eu já percebi que muitas vezes a outra metade da maçã é mais tortinha, sem jeito, menos bonita... mas ainda assim a metade daquela maçã. E por que na vida não poderia ser assim? Que a outra metade seja diferente, que não tenha exatamente os mesmos gostos, nem talvez a mesma formosura, mas que tenha aquele quê que nem sabemos explicar e nenhuma outra metade vai se encaixar de forma tão harmoniosa para formar um todo tão perfeito com a gente.
Quem já não encontrou casais desencontrados? Um grande, o outro pequeno; um feio, o outro bonito; um bem mais jovem, o outro mais vivido; um tímido, o outro extrovertido... e assim pela vida afora. E nos perguntamos intimamente o que os mantêm juntos. Mas se pensarmos mais profundamente nessa questão chegaremos à conclusão que são essas sim, as almas gêmeas. Dois seres diferentes, mas se amando o bastante para superar as diferenças, viver e conviver com elas e apesar delas, contra todo pensamento, contra todo questionamento, contra toda opinião alheia.
O papel da alma gêmea é completar os vazios, preencher os vácuos, enriquecer onde o outro tem necessidade... é um dar e receber que só envolve os dois.
A alma gêmea é o complemento do outro, não sua extensão. Quem corre atrás da sua sombra vive eternamente insatisfeito, eternamente à procura. Mas aquele que abre os olhos e, principalmente, o coração, pode perceber que sua alma gêmea encontra-se do lado. É preciso se estar atento aos sinais que não enganam para o encontro com aquela pessoa que poderá ser nossa companheira na jornada da vida.
Se o amor te acenar, não diga não de imediato só porque ele chegou diferente do que você esperava. Não se esqueça que por detrás dessa nossa capa humana existe uma alma. Se no seu caminho uma outra alma completar a sua, independente da aparência física, independente até de tudo aquilo que você sonhou, você vai ter encontrado a sua metade, seu amor, seu quinhão de felicidade.

A ARTE DE PRODUZIR FOME




Adélia Prado me ensina pedagogia. Diz ela: "Não quero faca nem queijo; quero é fome". O comer não começa com o queijo. O comer começa na fome de comer queijo. Se não tenho fome é inútil ter queijo. Mas se tenho fome de queijo e não tenho queijo, eu dou um jeito de arranjar um queijo...
Sugeri, faz muitos anos, que, para se entrar numa escola, alunos e professores deveriam passar por uma cozinha. Os cozinheiros bem que podem dar lições aos professores. Foi na cozinha que a Babette e a Tita realizaram suas feitiçarias... Se vocês, por acaso, ainda não as conhecem, tratem de conhecê-las: a Babette, no filme "A Festa de Babette", e a Tita, em "Como Água para Chocolate". Babette e Tita, feiticeiras, sabiam que os banquetes não começam com a comida que se serve. Eles se iniciam com a fome. A verdadeira cozinheira é aquela que sabe a arte de produzir fome...
Quando vivi nos Estados Unidos, minha família e eu visitávamos, vez por outra, uma parenta distante, nascida na Alemanha. Seus hábitos germânicos eram rígidos e implacáveis.
Não admitia que uma criança se recusasse a comer a comida que era servida. Meus dois filhos, meninos, movidos pelo medo, comiam em silêncio. Mas eu me lembro de uma vez em que, voltando para casa, foi preciso parar o carro para que vomitassem. Sem fome, o corpo se recusa a comer. Forçado, ele vomita.
Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim "affetare", quer dizer "ir atrás". É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado.
Eu era menino. Ao lado da pequena casa onde morava, havia uma casa com um pomar enorme que eu devorava com os olhos, olhando sobre o muro. Pois aconteceu que uma árvore cujos galhos chegavam a dois metros do muro se cobriu de frutinhas que eu não conhecia.
Eram pequenas, redondas, vermelhas, brilhantes. A simples visão daquelas frutinhas vermelhas provocou o meu desejo. Eu queria comê-las.
E foi então que, provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar se pôs a funcionar. Anote isso: o pensamento é a ponte que o corpo constrói a fim de chegar ao objeto do seu desejo.
Se eu não tivesse visto e desejado as ditas frutinhas, minha máquina de pensar teria permanecido parada. Imagine se a vizinha, ao ver os meus olhos desejantes sobre o muro, com dó de mim, tivesse me dado um punhado das ditas frutinhas, as pitangas. Nesse caso, também minha máquina de pensar não teria funcionado. Meu desejo teria se realizado por meio de um atalho, sem que eu tivesse tido necessidade de pensar. Anote isso também: se o desejo for satisfeito, a máquina de pensar não pensa. Assim, realizando-se o desejo, o pensamento não acontece. A maneira mais fácil de abortar o pensamento é realizando o desejo. Esse é o pecado de muitos pais e professores que ensinam as respostas antes que tivesse havido perguntas.
Provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar me fez uma primeira sugestão, criminosa. "Pule o muro à noite e roube as pitangas." Furto, fruto, tão próximos... Sim, de fato era uma solução racional. O furto me levaria ao fruto desejado. Mas havia um senão: o medo. E se eu fosse pilhado no momento do meu furto? Assim, rejeitei o pensamento criminoso, pelo seu perigo.
Mas o desejo continuou e minha máquina de pensar tratou de encontrar outra solução: "Construa uma maquineta de roubar pitangas". McLuhan nos ensinou que todos os meios técnicos são extensões do corpo. Bicicletas são extensões das pernas, óculos são extensões dos olhos, facas são extensões das unhas.
Uma maquineta de roubar pitangas teria de ser uma extensão do braço. Um braço comprido, com cerca de dois metros. Peguei um pedaço de bambu. Mas um braço comprido de bambu, sem uma mão, seria inútil: as pitangas cairiam.
Achei uma lata de massa de tomates vazia. Amarrei-a com um arame na ponta do bambu. E lhe fiz um dente, que funcionasse como um dedo que segura a fruta. Feita a minha máquina, apanhei todas as pitangas que quis e satisfiz meu desejo. Anote isso também: conhecimentos são extensões do corpo para a realização do desejo.
Imagine agora se eu, mudando-me para um apartamento no Rio de Janeiro, tivesse a idéia de ensinar ao menino meu vizinho a arte de fabricar maquinetas de roubar pitangas. Ele me olharia com desinteresse e pensaria que eu estava louco. No prédio, não havia pitangas para serem roubadas. A cabeça não pensa aquilo que o coração não pede. E anote isso também: conhecimentos que não são nascidos do desejo são como uma maravilhosa cozinha na casa de um homem que sofre de anorexia. Homem sem fome: o fogão nunca será aceso. O banquete nunca será servido.
Dizia Miguel de Unamuno: "Saber por saber: isso é inumano..." A tarefa do professor é a mesma da cozinheira: antes de dar faca e queijo ao aluno, provocar a fome... Se ele tiver fome, mesmo que não haja queijo, ele acabará por fazer uma maquineta de roubá-los. Toda tese acadêmica deveria ser isso: uma maquineta de roubar o objeto que se deseja...

sábado, 30 de março de 2013

OFICIALMENTE VELHO



Neste mês de dezembro completo 70 anos. Pelas condições brasileiras, me torno oficialmente velho. Isso não significa que estou próximo da morte, porque esta pode ocorrer já no primeiro momento da vida. Mas é uma outra etapa da vida, a derradeira. Esta possui uma dimensão biológica, pois irrefreavelmente o capital vital se esgota, nos debilitamos, perdemos o vigor dos sentidos e nos despedimos lentamente de todas as coisas.
De fato, ficamos mais esquecidos, quem sabe, impacientes e sensíveis a gestos de bondade que nos levam facilmente às lágrimas. Mas há um outro lado, mais instigante. A velhice é a última etapa do crescimento humano. Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades e ao moldar o nosso destino. Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer, vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer. Então entramos no silêncio. E morremos.
A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e finalmente terminar de nascer. Neste contexto, é iluminadora a palavra de São Paulo: ”na medida em que definha o homem exterior, nesta mesma medida rejuvenesce o homem interior” (2Cor 4,16). A velhice é uma exigência do homem interior. Que é o homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Esta identidade devemos encará-la face a face.
Ela é pessoalíssima e se esconde atrás de muitas máscaras que a vida nos impõe. Pois a vida é um teatro no qual desempenhamos muitos papéis. Eu, por exemplo, fui franciscano, padre, agora leigo, teólogo, filósofo, professor, conferencista, escritor, editor, redator de algumas revistas, inquirido pelas autoridades doutrinais do Vaticano, submetido ao “silêncio obsequioso” e outros papéis mais. Mas há um momento em que tudo isso é relativizado e vira pura palha.
Então deixamos o palco, tiramos as máscaras e nos perguntamos: Afinal, quem sou eu? Que sonhos me movem? Que anjos que habitam? Que demônios me atormentam? Qual é o meu lugar no desígnio do Mistério? Na medida em que tentamos, com temor e tremor, responder a estas indagações vem à lume o homem interior. A resposta nunca é conclusiva; perde-se para dentro do inefável.
Este é o desafio para a etapa da velhice. Então nos damos conta de que precisaríamos muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que nos defina. Surpresos, descobrimos que não vivemos porque simplesmente não morremos, mas vivemos para pensar, meditar, rasgar novos horizontes e criar sentidos de vida.
Especialmente para tentar fazer uma síntese final, integrando as sombras, realimentando os sonhos que nos sustentaram por toda uma vida, reconciliando-nos com os fracassos e buscando sabedoria. É ilusão pensar que esta vem com a velhice. Ela vem do espírito com o qual vivenciamos a velhice como a etapa final do crescimento e de nosso verdadeiro Natal.
Por fim, importa preparar o grande Encontro. A vida não é estruturada para terminar na morte, mas para se transfigurar através da morte. Morremos para viver mais e melhor, para mergulhar na eternidade e encontrar a Última Realidade, feita de amor e de misericórdia. Aí saberemos finalmente quem somos e qual é o nosso verdadeiro nome.
Nutro o mesmo sentimento que o sábio do Antigo Testamento: ”contemplo os dias passados e tenho os olhos voltados para a eternidade”.
Por fim, alimento dois sonhos, sonhos de um jovem ancião: o primeiro é escrever um livro só para Deus, se possível com o próprio sangue; e o segundo, impossível, mas bem expresso por Herzer, menina de rua e poetisa: ”eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver”. Mas como isso é irrealizável, só me resta aprender na escola de Deus. Parafraseando Camões, completo: mais vivera se não fora, para tão longo ideal, tão curta a vida.
Leonardo Boff, teólogo brasileiro) 14/12/1938, Concórdia (SC). Neto de italianos que migraram para o sul do Brasil no final do século 19, Leonardo Boff, garoto ainda, com  11 anos, partiu de sua cidade natal, Concórdia, com destino ao seminário de Luzerna, no Vale do Rio do Peixe (SC), certo de que o seu futuro era o da fé. Fez estudos avançados em universidades de prestígio, como Wurzburg, Lovaina e Oxford, doutorando-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique, Alemanha, em 1970. Ficou conhecido pelos seus trabalhos sobre a Teoria da Libertação
Seus textos serviram de base para novas gerações de teólogos latino-americanos. Mas ao combinar a Bíblia com a política, desagradou às autoridades eclesiásticas. Em 1984, como punição pelo livro Igreja, Carisma e Poder (1981), no qual chega a criticar a própria estrutura da Igreja, foi chamado a dar explicações ao Vaticano, sendo condenado a um "silêncio obsequioso" por um ano, sendo proibido de se manifestar publicamente.
Em 1992, ao ser condenado novamente, o teólogo, resolveu pedir dispensa do sacerdócio.
Atualmente, além de um grande teórico da fé, destaca-se como um idealista: cria e assessora Comunidades Eclesiais de Base, para as quais prega a luta por uma sociedade mais justa e humana, na qual os pobres não devem simplesmente aceitar a condição de miséria como algo natural, mas agir em favor da justiça social. Professor emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, publicou mais de 70 livros.
Enviado por Roy Lacerda do blog MomentoBrasil e foi aqui postado, por ser pertinente à proposta do Arca.