Neste mês de dezembro completo 70 anos. Pelas condições
brasileiras, me torno oficialmente velho. Isso não significa que estou próximo
da morte, porque esta pode ocorrer já no primeiro momento da vida. Mas é uma
outra etapa da vida, a derradeira. Esta possui uma dimensão biológica, pois
irrefreavelmente o capital vital se esgota, nos debilitamos, perdemos o vigor
dos sentidos e nos despedimos lentamente de todas as coisas.
De fato, ficamos mais esquecidos, quem sabe, impacientes e
sensíveis a gestos de bondade que nos levam facilmente às lágrimas. Mas há um
outro lado, mais instigante. A velhice é a última etapa do crescimento humano.
Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar nosso
nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar
dificuldades e ao moldar o nosso destino. Estamos sempre em gênese. Começamos a
nascer, vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer.
Então entramos no silêncio. E morremos.
A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de
crescer, madurar e finalmente terminar de nascer. Neste contexto, é iluminadora
a palavra de São Paulo: ”na medida em que definha o homem exterior, nesta mesma
medida rejuvenesce o homem interior” (2Cor 4,16). A velhice é uma exigência do
homem interior. Que é o homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo
singular de ser e de agir, a nossa marca registrada, a nossa identidade mais
radical. Esta identidade devemos encará-la face a face.
Ela é pessoalíssima e se esconde atrás de muitas máscaras que a
vida nos impõe. Pois a vida é um teatro no qual desempenhamos muitos papéis.
Eu, por exemplo, fui franciscano, padre, agora leigo, teólogo, filósofo,
professor, conferencista, escritor, editor, redator de algumas revistas,
inquirido pelas autoridades doutrinais do Vaticano, submetido ao “silêncio
obsequioso” e outros papéis mais. Mas há um momento em que tudo isso é
relativizado e vira pura palha.
Então deixamos o palco, tiramos as máscaras e nos perguntamos:
Afinal, quem sou eu? Que sonhos me movem? Que anjos que habitam? Que demônios
me atormentam? Qual é o meu lugar no desígnio do Mistério? Na medida em que
tentamos, com temor e tremor, responder a estas indagações vem à lume o homem
interior. A resposta nunca é conclusiva; perde-se para dentro do inefável.
Este é o desafio para a etapa da velhice. Então nos damos conta de
que precisaríamos muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que
nos defina. Surpresos, descobrimos que não vivemos porque simplesmente não
morremos, mas vivemos para pensar, meditar, rasgar novos horizontes e criar
sentidos de vida.
Especialmente para tentar fazer uma síntese final, integrando as
sombras, realimentando os sonhos que nos sustentaram por toda uma vida,
reconciliando-nos com os fracassos e buscando sabedoria. É ilusão pensar que
esta vem com a velhice. Ela vem do espírito com o qual vivenciamos a velhice
como a etapa final do crescimento e de nosso verdadeiro Natal.
Por fim, importa preparar o grande Encontro. A vida não é
estruturada para terminar na morte, mas para se transfigurar através da morte.
Morremos para viver mais e melhor, para mergulhar na eternidade e encontrar a
Última Realidade, feita de amor e de misericórdia. Aí saberemos finalmente quem
somos e qual é o nosso verdadeiro nome.
Nutro o mesmo sentimento que o sábio do Antigo Testamento:
”contemplo os dias passados e tenho os olhos voltados para a eternidade”.
Por fim, alimento dois sonhos, sonhos de um jovem ancião: o
primeiro é escrever um livro só para Deus, se possível com o próprio sangue; e
o segundo, impossível, mas bem expresso por Herzer, menina de rua e poetisa:
”eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver”. Mas como isso é
irrealizável, só me resta aprender na escola de Deus. Parafraseando Camões,
completo: mais vivera se não fora, para tão longo ideal, tão curta a vida.
Leonardo Boff, teólogo brasileiro)
14/12/1938, Concórdia (SC). Neto de italianos que migraram para o sul do Brasil
no final do século 19, Leonardo Boff, garoto ainda, com 11 anos, partiu
de sua cidade natal, Concórdia, com destino ao seminário de Luzerna, no Vale do
Rio do Peixe (SC), certo de que o seu futuro era o da fé. Fez estudos avançados
em universidades de prestígio, como Wurzburg, Lovaina e Oxford, doutorando-se
em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique, Alemanha, em 1970. Ficou
conhecido pelos seus trabalhos sobre a Teoria da Libertação
Seus
textos serviram de base para novas gerações de teólogos latino-americanos. Mas
ao combinar a Bíblia com a política, desagradou às autoridades eclesiásticas.
Em 1984, como punição pelo livro Igreja, Carisma e Poder (1981), no qual chega
a criticar a própria estrutura da Igreja, foi chamado a dar explicações ao Vaticano,
sendo condenado a um "silêncio obsequioso" por um ano, sendo proibido
de se manifestar publicamente.
Em
1992, ao ser condenado novamente, o teólogo, resolveu pedir dispensa do
sacerdócio.
Atualmente,
além de um grande teórico da fé, destaca-se como um idealista: cria e assessora
Comunidades Eclesiais de Base, para as quais prega a luta por uma sociedade
mais justa e humana, na qual os pobres não devem simplesmente aceitar a
condição de miséria como algo natural, mas agir em favor da justiça social.
Professor emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, publicou mais de
70 livros.
Enviado por Roy Lacerda do blog MomentoBrasil e
foi aqui postado, por ser pertinente à proposta do Arca.