Venho desde
ontem, desde o passado escuro e esquecido, com as mãos marcadas pelo tempo, com
a boca fechada desde épocas remotas...
Venho
carregada de dores antigas, guardadas por séculos, arrastando grilhões imensos
e indestrutíveis...
Venho da obscuridade,
do poço do esquecimento com o silêncio nas costas, com o medo ancestral que tem
corroído minha alma desde o princípio dos tempos...
Venho de ser
escrava por milênios, escrava de maneiras diferentes: submetida ao desejo de
meu raptor na Pérsia; escravizada na Grécia sob o poder romano; convertida em
vestal nas terras do Egito; oferecida aos deuses em ritos milenares; vendida no deserto, ou avaliada como uma
mercadoria...
Venho de ser
apedrejada por adúltera nas ruas de Jerusalém, por uma turba de hipócritas, pecadores
de todas as espécies, que clamavam ao céu por meu castigo...
Tenho sido
mutilada em muitos povos, para privar meu corpo de prazeres e convertida em
animal de carga, trabalhadora e parideira da espécie...
Têm-me
violado sem limites, em todos os cantos do planeta, sem levar em consideração
minha idade madura, ou juventude, minha cor ou estatura...
Tive que
servir ontem aos senhores, submeter-me aos seus desejos, entregar-me, doar-me,
destruir-me, esquecer-me de ser uma entre milhares...
Fui cortesão
de um senhor em Castilha, esposa de um marquês e concubina de um comerciante
grego, prostituta em Bombaim e nas Filipinas. E esse tratamento foi sempre
assim...
De uns e
outros sempre fui escrava. De uns e outros sempre dependente. Menor de idade em
todos os assuntos, Invisível na História mais antiga e esquecida na História
mais recente...
Não tive a
luz do alfabeto. Durante muitos séculos reguei com minhas lágrimas a terra que
devia cultivar desde a infância...
Tenho
percorrido o mundo em milhares de vidas que me têm sido entregues, uma a uma...
E tenho conhecido todos os homens do planeta: os grandes, os pequenos, os
bravos e os covardes, os vis, os honestos, os bons e os terríveis. Mas quase
todos levam a marca do tempo. Uns manejam vidas como patrões e senhores,
asfixiam, aprisionam e aniquilam... Outros subjugam almas, comercializam com
ideias, assustam ou seduzem, manipulam ou oprimem...
Conheço a
todos. Estive perto de uns e outros, servindo cada dia, recolhendo migalhas,
humilhando-me a cada passo, cumprindo meu carma...
Tenho
percorrido todos os caminhos, arranhado paredes, ensaiado silêncios, tratando
de cumprir as ordens de ser como eles querem, mas não tenho conseguido...
Jamais se
permitiu que eu escolhesse o rumo de minha vida. Tenho caminhado sempre em
disjunção entre ser santa ou prostituta...
Tenho
conhecido o ódio e os inquisidores, que, em nome da santa madre igreja condenam
meu corpo a seu serviço às infames chamas da fogueira.
Têm-me
chamado de múltiplas maneiras: bruxa, louca, adivinha, pervertida, aliada de
Satan, escrava da carne, sedutora, ninfomaníaca, culpada de todos os males da
Terra...
Mas segui
vivendo, arando, colhendo, costurando, construindo, cozinhando, tecendo,
curando, protegendo, parindo, criando, amamentando, cuidando e, sobretudo,
amando...
Tenho
povoado a Terra de senhores e escravos, de ricos e mendigos, de gênios e
idiotas. Mas todos tiveram o calor de meu ventre, meu sangue e seu alimento. E
levaram com eles um pouco de minha vida...
Consegui
sobreviver à conquista brutal e sem piedade de Castilha, nas terras da América. Mas perdi meus deuses
e minha terra, e meu ventre pariu gente mestiça depois que o patrão me tomou à
força...
E neste
continente mestiço, prossegui minha existência carregada de dores cotidianas,
negra e escrava. No meio da fazenda me vi obrigada a receber o patrão quantas
vezes ele quisesse, sem poder expressar nenhuma queixa...
Depois fui
costureira, camponesa, servente, agricultora, mãe de muitos filhos miseráveis,
vendedora ambulante, curandeira, babá, cuidadora de velhos, artesão de mãos
prodigiosas, tecelã, bordadeira, operária, professora, secretária,
enfermeira...
Sempre
servindo a todos, convertida em abelha ou semeadeira, fazendo as tarefas mais
ingratas, moldada como uma jarra por mãos alheias...
Um dia já
sofri por minhas angústias, um dia cansei de minhas lides, abandonei o deserto
e o oceano, desci a montanha, atravessei as selvas e os confins e converti
minha voz doce e tranquila em buzina, em grito universal e enlouquecido...
E convoquei
a viúva, a casada, a mulher do povo, a solteira, a mãe angustiada, a feia, a
recém-nascida, a violada, a triste, a calada, a bonita, a pobre, a afligida, a
ignorante, a fiel, a enganada, a prostituída...
Vieram
milhões de mulheres juntas a escutar minhas queixas. Falou-se de dores
milenares, dos enormes grilhões que os séculos nos fizeram carregar nas
costas...
E formamos,
com todos os nossos lamentos, um caudaloso rio que começou a percorrer o
Universo, afogando a injustiça e o esquecimento...
O mundo
ficou paralisado, os homens e mulheres não caminharam. Pararam-se as máquinas,
os tornos, os grandes edifícios e as fábricas, ministérios e hotéis, oficinas,
hospitais e lojas, lares e cozinhas...
Nós,
mulheres, finalmente descobrimos: somos tão poderosas quanto eles, e somos
muito mais numerosas sobre a Terra! Mais que o silêncio, mais que o sofrimento?
Mais que a infâmia, e mais que a miséria!
Que este
canto ressoe nas longínquas terras da Indochina, nas cálidas areias da África,
no Alasca e na América Latina, conclamando à igualdade entre os gêneros a
construir um mundo solidário – diferente, horizontal, sem poderes – a conjugar
a ternura, a paz e a vida, a beber da ciência, sem distinção. A derrotar o ódio
e os preconceitos, o poder de uns poucos, as mesquinhas fronteiras, a amassar
com as mãos de ambos os sexos o pão da existência...
Este poema obteve o primeiro prêmio no concurso de
poesia “Gabriela Mistral” em Quito, Equador, em 1992. A autora nasceu no
Equador, é professor e socióloga, ativista na luta pelos direitos e igualdade
entre homens e mulheres.
Um comentário:
Maria Jose: Belo texto e com uma bela reflexão amei ler.
Beijos
Santa Cruz
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