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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

VISTA CANSADA


Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.
Enviado por Roy Lacerda do blog MomentoBrasil e foi aqui postado, por ser pertinente à proposta do Arca.

4 comentários:

Anônimo disse...

Creo que hay que ver las cosas como si fuera la última vez y, también, como si fuera la Primera ocasión que las hemos visto, bajo el enfoque de la mirada de un niño...de ese niño que siempre estará en nuestro Interior.
Muy buen Post.
Abraços.

Denise Carreiro disse...

Esse texto é um "puxão de orelhas". Isso que vc coloca é em relação ao olhar, mas essa mesma atitude temos em uma série de coisas: não escutamos, não refletimos, não vivemos. Li um texto recentemente, onde um rapaz descrevia seu mestre, dizendo q o era porque quando fazia algo, realmente fazia. Por exemplo, quando caminhava, apenas caminhava. Quantas vezes caminhamos com nossa mente repleta por outras preocupações e, como citou vc, não olhamos o caminho que percorremos. É importante viver cada coisa. Muita paz!

Carol disse...

Verdade,"tampamos nossos olhos" e não observamos as coisas que fazem parte de nossa rotina.Bjs

Matilda disse...

Bonitas palabras y precioso tu blog,bs.