Páginas

sábado, 23 de junho de 2012

QUANDO OS ANOS DOBRAM



Eu recordo, falava a senhora no círculo de amigas, como eu era.
Impetuosa, falava sem pensar. Dizia o que me vinha à cabeça e achava que era dona do mundo.
Caprichosa, queria as coisas do meu jeito e gritava, e exigia, sem parar.
Meticulosa, atinha-me a mínimos detalhes. Arrumava o quadro que estivesse um milímetro torto na parede, arrumava o enfeito sobre a mesa. Entrava em casa e meus olhos procuravam algo que estivesse fora do lugar, para eu ter o prazer de colocar no lugar. E reclamar de quem não o colocara exatamente como eu desejava.
Meu armário de roupas era impecável. Todas as roupas alinhadas, divididas por estação, por cores. Eu podia procurar uma roupa no escuro e a encontrar. Mas, ai de quem ousasse mexer no armário.
Eu tinha a capacidade de saber se alguém sequer abrira o armário. E era motivo para uma grande discussão.
Tinha os livros em uma grande biblioteca. Separados por autor. Por assunto. Tudo em absoluta ordem alfabética para facilitar a busca.
Naturalmente, ninguém podia tocar nos livros a não ser que eu apanhasse a obra e a entregasse em mãos. E as recomendações eram inúmeras. “Cuidado com a capa. Não amasse. Lave bem as mãos antes de abrir o livro.”
Sim, eu era assim. Nada do que qualquer pessoa fizesse era suficientemente bom para mim. Eu fazia a limpeza da casa, porque ninguém fazia como eu. E consumia as horas em ordenar, alinhar, agrupar, ajustar. Para tudo ficar sempre impecável. Um brinco.
O tempo passou e descobri que eu estava errada em muitas coisas. Quando minha irmã partiu, bruscamente, levada por um acidente de carro, senti o coração despedaçar.
Então, olhando a casa vazia da sua presença, me perguntei de que valia tudo estar em ordem, impecável? Eu daria tudo para que ela estivesse ali, e entrasse e bagunçasse os meus livros, a minha louça, as minhas coisas. Queria vê-la abrir meu armário e escolher uma roupa para vestir, retirando da ordem tanta coisa que estava ali, parada, sem uso.
Depois, partiu meu irmão, minha mãe. Um a um eles se foram. E a cada partida, eu fui descobrindo que o bom é se ter a casa para as pessoas entrarem e se sentirem bem. Viverem, sem serem sufocadas.
Descobri que mais importante do que tudo, aquelas presenças, agora ausentes, é o que davam mesmo sentido à minha vida.
E então, eu mudei.
Ainda gosto, sim, das coisas arrumadas, em ordem. Mas, sem exageros. Meus sobrinhos entram em minha casa, brincam e pulam, sentindo-se à vontade. Sento-me com eles no chão para folhear os livros, ler histórias, olhar gravuras. E enquanto lemos, comemos pipoca, chocolate. Tomamos suco.
Como é bom saborear histórias com alguém ávido de curiosidade. Mesmo que tenha os dedinhos sujos de chocolate ou engordurados pela pipoca.
Meu armário de roupas já não anda tão intocável assim. As sobrinhas adoram procurar algo diferente para usar. Nem que seja para o baile à fantasia com suas amigas.
Aprendi a aceitar o trabalho alheio e respeitá-lo. As horas que passaria encerando, limpando, lustrando, lavando, eu dedico às crianças, aos jovens, aos meus amores.
Sim, eu mudei muito. A vida me ensinou. Pena que eu tenha precisado receber tantos recados de perdas para poder aprender. Poderia ter sido muito mais feliz, desde há muito tempo. Agradeço a Deus, no entanto, ter acordado a tempo de ainda desfrutar muitas alegrias na Terra.
Sinceramente, espero que ninguém precise passar por isso para aprender.

9 comentários:

Bloguinho da Zizi disse...

Como é triste essa descoberta.
Saber que nossa ordem não é mesma DELE.
Tudo em ordem, mas vazio.
Mas assim é a vida, temos uma ordem, uma rotina e vem ela e mostra que vai mudar tudo, do jeito dela.
Só podemos aceitar e permitir que a "desordem" se instale.

Meu carinho pra vc Maria José

Sandra Portugal disse...

Querida eu era exatamente assim, armário impecável ordenado por degradé de cor de roupa, separado por roupa de inverno e de verão, e somente eu poderia guardá-las. Sinceramente me sentia invadida quando alguém mexia em minhas coisas, mas de repente me percebi afastando as pessoas de mim e me enxerguei em minha mãe que afastou dela muitas pessoas pela mania de perfeccionismo que virou isolamento. Voce está certíssima no seu depoimento. Eu também aprendi, talvez por outros caminhos, por outras vivências, outras "perdas", mas também aprendizados.
Bom final de semana de baguncinha organizada em seu lar!
bjs Sandra
http://projetandopessoas.blogspot.com//

O Ser Humano e o Elementos da NATUREZA disse...

Realmente amiga! Tenho uma irmã super implicante e com muitas manias, vivo conversando com ela, mas de nada adianta. Hoje, sou uma pessoa bem diferente, aprendi a viver melhor, é claro, gosto ainda de tudo organizado, porém é uma organização diferente Rsrsrsrsrsrs...Caminho devagar e não me detenho muito a esses detalhes.....prefiro estar de bem com todos e principalmente comigo mesma! ABRAÇOS!

Cidinha disse...

Oi, Maria. Boa noite e feliz domingo. O texto nos dá uma grande lição! Com o tempo vamos mudando nossos hábitos, o que é benéfico pra todos nós. Obrigada amiga! bjos.

Duendes disse...

Nada de mais é bom precisamos achar um justo equilibrio ....Otima cronica amiga vim matar as saudades e desejar um otimo domingo pra vc.beijocas.

Anônimo disse...

MARIA JOSÉ:

"E a cada partida, eu fui descobrindo que o bom é se ter a casa para as pessoas entrarem e se sentirem bem. Viverem, sem serem sufocadas.
Descobri que mais importante do que tudo, aquelas presenças, agora ausentes, é o que davam mesmo sentido à minha vida.
E então, eu mudei.
INFELIZMEENTE, qdo não aprendemos pelo amor, fatalmente aprendemos pela dor, amor.
INDO NO POPULAR: SÒ DAMOS VALOR ÀS PESSOAS e/ou ÀS COISAS, qdo já NÃO A TEMOS AO ALCANCE DAS MÃOS. Bjs. Roy Lacerda.

Pelos caminhos da vida. disse...

Ao passar do tempo fui aprendendo e mudando algumas manias minhas que incomodavam as pessoas.

Bom domingo amiga.

beijooo.

Unknown disse...

O tempo nos ensina a viver.

Beijo.

Unknown disse...

Maria Jose: A vida a mesmo assim eu também não gosto que mexam nas minhas coisas e minha roupa mas ja é habito ca de casa ninguem mexe naquilo que não é dele.
Beijos
Santa Cruz