Não sei porquê lembrei somente depois de tanto
tempo. O que puxou o fio do novelo do silêncio e fez a memória falar. Não tem
importância. Algumas lembranças são presentes valiosos demais para a gente se
ocupar em tentar compreender porque de repente vêm à tona. São peças que nos
trazem uma nova leitura do desenho do quebra-cabeça. São chaves capazes de
abrir portas que dão acesso a varandas onde a gente se sente caminhando
descalço, inspirando jardins, flagrando vaga-lumes com olhos de inocência.
Toda vez que a visitava, na hora de eu ir embora
ela caminhava comigo um quarteirão inteiro da rua para se despedir. No mínimo.
Concluído aquele trecho, muitas vezes resolvia me acompanhar no trajeto do
quarteirão seguinte, até eu chegar no ponto do ônibus. Eu sabia que era uma
forma de estender ao máximo o nosso encontro. Um delicado acordo tácito
cumprido à risca durante todos aqueles anos. De mãos dadas, seguíamos com
passos de algodão. E se fosse inverno no meu coração ou no dela, não fazia
diferença: sempre eram pés de primavera aqueles que caminhavam lado a lado
florindo sóis pelas calçadas. Coisas do amor.
Naquela manhã, pela primeira vez, o hábito foi
quebrado. Limitou-se a me levar ao portão. O corpo onde habitava estava cansado
demais para caminhar comigo os costumeiros quarteirões floridos. Quem sabe para
driblar o desconforto causado pela nova circunstância, inventamos um outro
jeito de afastamento: ao nos despedirmos, brincamos de roda. Foi uma dança
rápida e imensa. Ainda sou capaz de sentir a música emanada do nosso riso. De
experimentar o lume com o qual aquela vida me olhava enquanto a minha dançava
com ela.
Não sabíamos, mas aquele foi o nosso último
encontro. Dias depois, a minha avó deixou aquela casa humana onde eu me
habituei a encontrá-la desde que nasci. Aquele punhado de manhãs de céu azul
anoiteceu naquele corpo para despertar em outros jardins. Caminhar de mãos
dadas, quem sabe, também com outros amores. Florir sóis por outras calçadas. E
por mais previsível que fosse a chegada daquele momento, acostumar-me com esta
novidade já antiga é um exercício que talvez eu realize durante toda a minha
vida.
Anos mais tarde, ao me dar conta de que na vez mais
recente em que a vi nós nos despedimos brincando de roda, o meu coração riu um
riso novo, feito de gratidão e reverência à sabedoria que tece grande parte das
belezas. Nada poderia ser mais fiel àquele amor tão lúdico que permeou o nosso
encontro, embrulhado para presente num papel com cheiro de Deus. Olhando em
retrospectiva, percebo que, embora nem sempre tenhamos conseguido, também fazia
parte do nosso acordo tácito a vontade de valorizar os momentos compartilhados
como se fossem únicos. De saboreá-los como se fossem os últimos. Parece que
lembrávamos que, às vezes, realmente são.
Nem sempre a saudade é tão generosa com a gente. Às
vezes, ela fica apegada um bocado de tempo a recordações tristes, culpas,
mágoas, arrependimentos por coisas que fizemos e por outras que achamos que
poderíamos ter feito, mas não soubemos. Nem sempre a gente sabe, é a pura
verdade, e a gente precisa se perdoar para seguir em frente. Para nos liberar e
liberar o outro, porque a falta de perdão acaba sendo uma cela para dois. E já
que o tempo não passa no coração, acho que é possível atualizar a nossa memória
o tempo todo. Podemos ser generosos com nós mesmos. Buscar nos nossos arquivos
o que existe lá de doçura, de graça, de amorosidade. Saborear as lembranças
risonhas que também trazemos conosco. Utilizá-las como pontes que nos ligam a
quem amamos quando a vida nos pede para inventar outros jeitos de encontro.
Que belo relato de uma lembrança...fez bem ao coração.Obrigada.
ResponderExcluirUm abraço
Tão linda lembrança, que aquece até nosso coração!
ResponderExcluirObrigada, Maria José, pelo texto saudoso, abraços
carinhosos
Maria Teresa