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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

UMA LEMBRANÇA RISONHA



Não sei porquê lembrei somente depois de tanto tempo. O que puxou o fio do novelo do silêncio e fez a memória falar. Não tem importância. Algumas lembranças são presentes valiosos demais para a gente se ocupar em tentar compreender porque de repente vêm à tona. São peças que nos trazem uma nova leitura do desenho do quebra-cabeça. São chaves capazes de abrir portas que dão acesso a varandas onde a gente se sente caminhando descalço, inspirando jardins, flagrando vaga-lumes com olhos de inocência.
Toda vez que a visitava, na hora de eu ir embora ela caminhava comigo um quarteirão inteiro da rua para se despedir. No mínimo. Concluído aquele trecho, muitas vezes resolvia me acompanhar no trajeto do quarteirão seguinte, até eu chegar no ponto do ônibus. Eu sabia que era uma forma de estender ao máximo o nosso encontro. Um delicado acordo tácito cumprido à risca durante todos aqueles anos. De mãos dadas, seguíamos com passos de algodão. E se fosse inverno no meu coração ou no dela, não fazia diferença: sempre eram pés de primavera aqueles que caminhavam lado a lado florindo sóis pelas calçadas. Coisas do amor.
Naquela manhã, pela primeira vez, o hábito foi quebrado. Limitou-se a me levar ao portão. O corpo onde habitava estava cansado demais para caminhar comigo os costumeiros quarteirões floridos. Quem sabe para driblar o desconforto causado pela nova circunstância, inventamos um outro jeito de afastamento: ao nos despedirmos, brincamos de roda. Foi uma dança rápida e imensa. Ainda sou capaz de sentir a música emanada do nosso riso. De experimentar o lume com o qual aquela vida me olhava enquanto a minha dançava com ela.
Não sabíamos, mas aquele foi o nosso último encontro. Dias depois, a minha avó deixou aquela casa humana onde eu me habituei a encontrá-la desde que nasci. Aquele punhado de manhãs de céu azul anoiteceu naquele corpo para despertar em outros jardins. Caminhar de mãos dadas, quem sabe, também com outros amores. Florir sóis por outras calçadas. E por mais previsível que fosse a chegada daquele momento, acostumar-me com esta novidade já antiga é um exercício que talvez eu realize durante toda a minha vida.
Anos mais tarde, ao me dar conta de que na vez mais recente em que a vi nós nos despedimos brincando de roda, o meu coração riu um riso novo, feito de gratidão e reverência à sabedoria que tece grande parte das belezas. Nada poderia ser mais fiel àquele amor tão lúdico que permeou o nosso encontro, embrulhado para presente num papel com cheiro de Deus. Olhando em retrospectiva, percebo que, embora nem sempre tenhamos conseguido, também fazia parte do nosso acordo tácito a vontade de valorizar os momentos compartilhados como se fossem únicos. De saboreá-los como se fossem os últimos. Parece que lembrávamos que, às vezes, realmente são.
Nem sempre a saudade é tão generosa com a gente. Às vezes, ela fica apegada um bocado de tempo a recordações tristes, culpas, mágoas, arrependimentos por coisas que fizemos e por outras que achamos que poderíamos ter feito, mas não soubemos. Nem sempre a gente sabe, é a pura verdade, e a gente precisa se perdoar para seguir em frente. Para nos liberar e liberar o outro, porque a falta de perdão acaba sendo uma cela para dois. E já que o tempo não passa no coração, acho que é possível atualizar a nossa memória o tempo todo. Podemos ser generosos com nós mesmos. Buscar nos nossos arquivos o que existe lá de doçura, de graça, de amorosidade. Saborear as lembranças risonhas que também trazemos conosco. Utilizá-las como pontes que nos ligam a quem amamos quando a vida nos pede para inventar outros jeitos de encontro.

2 comentários:

  1. Que belo relato de uma lembrança...fez bem ao coração.Obrigada.
    Um abraço

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  2. Tão linda lembrança, que aquece até nosso coração!
    Obrigada, Maria José, pelo texto saudoso, abraços
    carinhosos
    Maria Teresa

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