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sábado, 28 de março de 2009

ANTIGA LENDA EGÍPCIA DO PEIXINHO VERMELHO


"No centro de formoso jardim, havia um grande lago adornado de ladrilhos azul-turquesa. Alimentado por diminuto canal de pedra, escoava suas águas, do outro lado, através de grade muito estreita. Nesse reduto acolhedor, vivia toda uma comunidade de peixes a se refestelarem, nédios e satisfeitos, em complicadas locas, frescas e sombrias. Elegeram um dos concidadãos de barbatanas para os encargos de Rei, e ali viviam, plenamente despreocupados, entre a gula e a preguiça. Junto deles, porém, havia um peixinho vermelho menosprezado por todos. Não conseguia pescar a mais leve larva, nem refugiar-se nos nichos barrentos. Os outros, vorazes e gorduchos, arrebatavam para si todas as formas de larvas e ocupavam, displicentes, todos os lugares consagrados ao descanso. O peixinho vermelho, que nadasse e sofresse ! Por isso mesmo era visto, em correria constante, perseguido pela canícula ou atormentado de fome. Não encontrando pouso no vastíssimo domicílio, o pobrezinho não dispunha de tempo para muito lazer e começou a estudar com bastante interesse.

Fez o inventário de todos os ladrilhos que enfeitavam as bordas do poço, arrolou todos os buracos nele existentes e sabia, com precisão, onde se reuniria a maior massa de lama por ocasião de aguaceiros. Depois de muito tempo, à custa de longas investigações minuciosas, encontrou a grade do escoadouro. À frente da imprevista oportunidade de aventura benéfica, refletiu consigo: – "Não será melhor pesquisar a vida e conhecer outros rumos?" Optou pela mudança. Apesar de magríssimo pela abstenção completa de qualquer conforto, perdeu várias escamas, com grande sofrimento, a fim de atravessar a passagem extremamente estreita. Pronunciando votos renovadores, avançou, otimista pelo rego d'água, encantado com as novas paisagens, ricas de flores e sol que o defrontavam, e seguiu embriagado de esperança. Em breve, alcançou grande rio e fez inúmeros conhecimentos. Encontrou peixes de muitas famílias diferentes que com ele simpatizaram, instruindo-o quanto aos percalços da marcha e descortinando-lhe mais fácil roteiro. Embevecido, contemplou nas margens homens e animais, embarcações e pontes, palácios e veículos, cabanas e arvoredo. Habituado com pouco, vivia com extrema simplicidade, jamais perdendo a leveza e agilidade naturais. Conseguiu, desse modo, atingir o oceano, ébrio de novidade e sedento de estudo. De início, porém, fascinado pela paixão de observar, aproximou-se de uma baleia para quem toda água do lago em que vivera não seria mais que diminuta ração; impressionado com o espetáculo, abeirou-se dela mais que devia e foi tragado com os elementos que lhe constituíam a primeira refeição diária. Em apuros, o peixinho aflito orou ao Deus dos peixes, rogando proteção no bojo do monstro e, não obstante as trevas em que pedia salvamento, sua prece foi ouvida, porque o valente cetáceo começou a soluçar e vomitou, restituindo-o às correntes marinhas. O pequeno viajante, agradecido e feliz, procurou companhias simpáticas e aprendeu a evitar os perigos e tentações. Plenamente transformado sem suas concepções do mundo, passou a reparar as infinitas riquezas da vida. Encontrou plantas luminosas, animais estranhos, estrelas móveis e flores diferentes no seio das águas. Sobretudo, descobriu a existência de muitos peixinhos, estudiosos e delgados tanto quanto ele, junto dos quais se sentia maravilhosamente feliz. Vivia, agora, sorridente e calmo, no palácio de coral que elegera, com centenas de amigos para residência ditosa, quando, ao se referir ao seu começo laborioso, veio a saber que somente no mar as criaturas aquáticas dispunham de mais sólida garantia de vez que, quando o estio se fizesse mais arrasador, as águas de outra altitude continuariam a correr para o oceano. O peixinho pensou, pensou... e sentindo imensa compaixão daqueles com quem convivera na infância, deliberou consagrar-se à obra do progresso e salvação deles. Não seria justo regressar e anunciar-lhes a verdade? Não seria nobre ampará-los, prestando-lhes valiosas informações? Não hesitou. Fortalecido pela generosidade de irmãos benfeitores que com ele viviam no palácio de coral, empreendeu comprida viagem de volta. Voltou ao rio, do rio dirigiu-se aos regatos e dos regatos se encaminhou para os canaizinhos que o conduziram ao primitivo lar. Esbelto e satisfeito como sempre, pela vida de estudo e serviço a que se devotava, varou a grade e procurou, ansiosamente, os velhos companheiros. Estimulado pela proeza de amor que efetuava, supõe que o seu regresso fosse causar surpresa e entusiasmo gerais. Certo, a coletividade inteira lhe celebraria o feito, mas depressa verificou que ninguém se mexia. Todos os peixes continuavam pesados e ociosos, repimpados nos mesmos ninhos lodacentos, protegidos por flores de lótus, de onde saíam apenas para disputar larvas, moscas ou minhocas desprezíveis. Gritou que voltara à casa, mas não houve quem lhe prestasse atenção, porquanto ninguém, ali havia dado pela ausência dele. Ridicularizado, procurou então, o Rei de guelras enormes e comunicou-lhe a reveladora aventura. O soberano, entorpecido pela mania de grandeza, reuniu o povo e permitiu que o mensageiro se explicasse. O benfeitor desprezado, valendo-se do ensejo, esclareceu com ênfase que havia outro mundo líquido, glorioso e sem fim. Aquele poço era uma insignificância que podia desaparecer de um momento para outro. Além do escoadouro próximo desdobravam-se outra vida e outra experiência. Lá fora, corriam regatos ornados de flores, rios caudalosos repletos de seres diferentes e, por fim, o mar, onde a vida se mostrava cada vez mais rica e surpreendente. Descreveu o serviço de tainhas e salmões, de trutas e esqualos. Deu notícias do peixe-lua, do peixe-coelho e do galo-do-mar. Contou que vira o céu repleto de astros sublimes e que descobrira árvores gigantescas, barcos imensos, cidades praieiras, monstros temíveis, jardins submersos, estrelas do oceano e ofereceu-se para conduzi-los ao palácio do coral, onde viveriam todos, prósperos e tranqüilos. Finalmente os informou de que semelhante felicidade, porém, tinha igualmente seu preço. Deveriam todos emagrecer convenientemente, abstendo-se de devorar tanta larva e tanto verme nas locas escuras e deveriam aprender a trabalhar e estudar tanto quanto era necessário à aventurosa jornada. Assim que terminou, gargalhadas estridentes coroaram-lhe a preleção. Ninguém acreditou nele. Alguns oradores tomaram a palavra e afirmaram solenes que o peixinho vermelho delirava, que outra vida além do poço era francamente impossível, que aquela história de riachos, rios e oceanos era mera fantasia de cérebro demente. O soberano da comunidade, para melhor ironizar o peixinho, dirigiu-se em sua companhia até a grade de escoamento e, tentando de longe a travessia, exclamou, borbulhante: – "Não vês que não cabe aqui nem uma só das minhas barbatanas? Grande tolo! Vai-te daqui! Não perturbes o nosso bem-estar...Nosso lago é o centro do universo...Ninguém possui vida igual à nossa!..." Expulso a golpes de sarcasmo, o peixinho realizou a viagem de retorno e instalou-se em definitivo, no palácio de coral, aguardando o tempo. Depois de alguns anos apareceu pavorosa e devastadora seca. As águas desceram de nível. E o poço onde viviam os peixes pachorrentos e vaidosos esvaziou-se, compelindo a comunidade inteira a aparecer, atolada na lama...”

Autoria anônima, apresentado por Carmen Diva B. Monteiro, Elvira Cruvinel Ventura e Patrícia Nassif da Cruz, e publicado no Caderno de Pesquisas em Administração, São Paulo, v.1, n.8, p.69-80, primeiro trimestre 1999.

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